quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal (Algoso)


Um dos mais incansaveis Nembroths, dos mais rudes caçadores de homens, que a Inquisição teve nos primeiros tempos de sua existencia, foi um certo Francisco Gil. Este miseravel tinha começado a carreira dos seus crimes pelo assassinio do genro de um mercador honrado de Lisboa, assassinio perpetrado publicamente no meio da Rua-nova2.

Revestido do cargo de sollicitador do tribunal da fé, Francisco Gil foi enviado pelas provincias a descubrir os sectarios occultos do judaismo. A empreza podia ser odiosa; mas não era nem arriscada nem difficil. O activo agente achou logo um melhodo efficaz e simples de obter avultada colheita. Chegando a qualquer logar onde residissem christaos-novos, mandava annunciar que em tal igreja se havia de fazer uma festa e procissão solemne. Corria o povo ao templo no dia assignalado. Então elle mandava fechar as portas e em nome da Inquisição intimava aos fiéis, debaixo das mais terriveis excommunhões, que, se no meio delles estavam alguns judeus occultos, os bons christãos lh'os indicassem1. Então os desgraçados reprobos do povo eram mandados pôr á parte, e d'alli conduzidos para a cadeia á ordem dos Inquisidores.

No seu gyro o implacavel commissario chegou a Miranda do Douro, e esse districto pa

l «quod quaecumque persona ibi cognoverit christianum novutn, ostendat illum:" (Ibid. fol. 312.) E evidentemente uma exaggeração de phrase. Gil não podia exigir que lhe indicassem os christaos-novos para os prender, mas sim os christãos-novos suspeitos de judaismo. É provavel, todavia, que em muitas partes o fanatismo tornasse synonimas as duas expressões.


Foram presos naquella villa onze individuos de ambos os sexos. Cada um delles devia , pagar-lhe quatorze mil reaes, somma que o sollicitador da Inquisição calculava ser necessaria para se transportarem ao logar em que, segundo as ordens do infante inquisidor-geral, deviam ser retidos.


Intimados judicialmente para apromptarem o dinheiro, resistiram todos, menos um pobre velho que jazia gravemente enfermo. Mandaram-se então inventariar e pôr em almoeda os bens dos réus, e estes foram removidos do castello de Miranda para o de Algoso, situado n'um ermo a meia legua da povoação deste nome. Gaspar Rodrigues, o velho enfermo, fôra ahi arrematante das rendas reaes.


O povo tinha-lhe má vontade, e os christãosnovos diziam que esta mudança era calculada para accender mais contra elle e contra os seus companheiros de infortunio a sanha popular. No castello de Miranda, construcção solida cingida por cinco torres alterosas, os simples ferrolhos dos alçapões do carcere respondiam pela segurança dos presos: no de Algoso, ruina de antiga fortificação, e longe do povoado, cumpria collocar guardas que obstassem a qualquer tentativa interna ou externa de evasão.


As tropas concelheiras, unicas que então havia, foram chamadas para aquelle serviço, e os factos vieram confirmar as previsões da gente da nação. As injurias das sentinellas ferviam sobre os encarcerados, e os camponezes mostravam para com Gaspar Rodrigues a mesma dureza de coração, que provavelmente elle lhes mostrára como exactor de tributos. A sua vingança estendia-se, porém, aos innocentes. Só a peso de ouro obtinham os presos os objectos mais necessarios á vida, o lume, a agua, os alimentos. Certo dia os guardas accenderam em frente da prisão uma grande fogueira e lançaram dentro um cão que ficou reduzido a cinzas. Era, diziam elles, o que haviam de fazer aos judeus que guardavam, antes que d'alli saissem. Entre estes havia uma Isabel Fernandes, mulher abastada, a quem Francisco Gil e o seu meirinho Pedro Borges tinham extorquido cem mil réis a pretexto de despezas de transito. Sem cama, sem uma camisa para mudar, a desgraçada chorava noite e dia. O esbirro offereceu-lhe então, não só confortos, mas até a liberdade se quizesse perfilhá-lo. Recusou. Redobraram os maus-tractos e carregaram-na de cadeias.

Vencida pela miseria e pela amargura a infeliz endoudeceu. Aos presos, que não lhe davam qualquer objecto que lhes pedia, trocava o malvado os grilhões por outros mais pesados, ou fazia-os descer a um logar profundo e humido, onde os deixava mettidos na agua. Gaspar Rodrigues, ferido já pelos ferros, leso de uma perna e a bem dizer semimorto, passou por ambos os martyrios. Francisco Gil accrescentava a estas barbaridades do seu meirinho uma singular extorsão: quando se lançavam ou augmentavam os grilhões aos presos, fazia-lhes pagar o custo delles. As pessoas que se dirigiam ao castello de Algoso para falar ás victimas, se acaso se demoravam mais tempo do que o permittido, impunha-lhes a multa de vinte mil reaes, e mandava-as expulsar d'alli, quando não as encarcerava1. Acaso as suas instrucções eram estas, e talvez a multa, fixada de antemão pelos inquisidores, não revertesse em seu beneficio. Fosse o que fosse, o que succedia era que ás vezes, a troco de alguns cruzados de peita, os colhidos na rede remiam a prisão e a multa. O espirito, porém, de violencia e de rapina dos dous agentes da Inquisição era tal, que elles proprios se tornavam ás vezes instrumentos indirectos da vingança das suas victimas.

1 O documento que seguimos diz que Francisco Gil multava quem vinha a Algoso, e que lhe impunha a pena de desterro: é evidente que estas expressões sío exaggeradas.

A rustica milicia da comarca de Miranda não desfructava gratuitamente o prazer de affrontar os presos de Algoso. Os lavradores tinham não só de velar o Castello, mas também de fazer roidas e vélas, ora num ora n'outro logar. Os indiciados de judaismo não se reduziam aos onze martyres transferidos para Algoso. As listas de réus eram extensas; as capturas multiplicavam-se; e os habitantes de qualquer aldeia que não iam dormir juncto do meirinho e dos outros esbirros, quando ahi chegavam com algum preso, eram severamente multados.


Herculano, Alexandre (1859), " Da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal: Tentativa historica, Volume 3 (Google eBook)". Acedido a 2 de Fevereiro de 2011, http://books.google.pt/books?id=umwNAAAAYAAJ&pg=PA125&dq=Algoso&hl=pt-pt&output=text#c_top

"

Sem comentários:

Enviar um comentário